Se o mundo muda, a psicanálise também. Eis
um texto essencial, de Jacques-Alain Miller, traçando algumas das coordenadas orientadoras da psicanálise no século XXI. Essencial. A tradução é minha, bem como as opções e possíveis erros.
O inconsciente e o corpo falante
Por Jacques-Alain Miller
Apresentação do tema do Xº Congresso da AMP no Rio de Janeiro em 2016
Mais do que na
cereja sobre o bolo, gostaria de pensar na bebida que lhes vou servir como
digestivo, após os alimentos que vos proporcionou este congresso
, para
abrir o apetite enquanto pensam no que vai ocorrer daqui a dois anos.
Espera-se, então, que eu introduza o tema do próximo congresso.
Digo a mim mesmo
que isto já dura há mais de trinta anos se pensarmos que os congressos da AMP
deram continuidade ao que se chamava Encontros internacionais do Campo
Freudiano, que começaram em 1980. Eis-nos ainda, portanto, mais uma vez, ao pé
do mesmo muro. A palavra muro surgiu-me, e ela não deixa de evocar o neologismo
que troça do amor: é ao amuro que devo a honra invariável que me é feita de dar
o lá da sinfonia, a que teremos de compor enquanto membros da AMP ao longo dos
dois anos que vão decorrer até nos reencontrarmos? Será ele um efeito de
transferência, transferência remanescente em relação àquele que teve a
responsabilidade de fundar outrora a nossa associação? Mas como eu recordava, o
cargo de intitular, de dar um nome, pelo menos um tema, assumo-o desde antes,
desde o primeiro encontro internacional que teve lugar em Buenos Aires na
presença de Lacan. Se há amuro, não o relacionaria com a função de fundador,
que nada consagra nos nossos estatutos, mas de um batedor,
função
que eu me tinha conferido ao intitular o meu curso «A orientação lacaniana».
Amuro quer
sobretudo dizer que é preciso trespassar o muro da linguagem para tentar
estreitar de mais perto – não digamos o real – o que fazemos na nossa prática
analítica. Mas, enfim, orientar-me no pensamento de Lacan foi a minha
preocupação e eu sei que nós a partilhamos. A Associação mundial de psicanálise
não tem, com efeito, outra coesão. Pelo menos esta preocupação está na base do agrupamento
que formamos, para além dos estatutos, dos mutualismos e mesmo dos laços de
amizade, de simpatia que se tecem entre nós há muitos anos.
Lacan
reivindicava para o seu pensamento a dignidade. Porque, dizia ele, empenhava-se
em sair da regra. E, com efeito, este pensamento extravia. Trata-se para nós de
o seguir por vias inéditas. Estas vias são por vezes obscuras. E tornaram-se ainda
mais quando Lacan mergulha no último ensino. Poderíamos tê-lo deixado aí,
abandonado. Mas empenhámo-nos em segui-lo e os dois últimos congressos
testemunham isso.
Porquê termo-nos
empenhado em segui-lo nesta última e difícil ramificação do seu ensino? Não
daremos qualquer importância ao gosto pelo deciframento. Tenho este gosto, e
temo-lo, porque somos analistas. E somo-lo o suficiente para perceber em certos
clarões, rompendo as nuvens obscuras do propósito de Lacan, que ele consegue
fazer ressaltar um relevo que nos ensina sobre aquilo em que se torna a
psicanálise e que já não é de todo conforme ao que se pensava que era. No
extremo limite, mas não vamos permanecer aí, ele deixou mesmo escapar que a
prática analítica lhe aparecia como uma prática delirante.
A psicanálise
muda, não é um desejo, é um facto, ela muda nos nossos gabinetes de analistas,
e esta mudança, no fundo para nós, é tão manifesta que o congresso de 2012
sobre a ordem simbólica, tal como o deste ano sobre o real, têm no título a
mesma menção cronológica ao «século XXI». Como dizer melhor que temos o
sentimento do novo e, com ele, a perceção da urgência da necessidade de um
acerto.
Como não
teríamos nós, por exemplo, a ideia de uma fratura, quando Freud inventou a
psicanálise, se podemos dizer, sob a égide da rainha Vitória, modelo da
repressão da sexualidade, enquanto o século XXI conhece a difusão maciça do que
se chama o porno, e que é o coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a
cada um na internet por meio de um simples clique do rato? De Vitória ao porno,
não passamos simplesmente da interdição à permissão, mas ao incitamento, à
intrusão, à provocação, ao acossamento. O que é o porno senão um fantasma
filmado com uma variedade adequada para satisfazer os apetites perversos na sua
diversidade? Nada mostra melhor a ausência de relação sexual no real do que a
profusão imaginária do corpo entregue a dar-se e a tomar-se.
É algo novo na
sexualidade, no seu regime social, nos seus modos de aprendizagem, nos jovens,
nas classes jovens que entram na carreira. Eis os masturbadores aliviados de
ter que produzir por si mesmos os sonhos diurnos visto que os encontram já
feitos, já sonhados para eles. O sexo fraco, quanto ao porno, é o masculino,
ele cede-lhe facilmente. Quantas vezes não se ouve em análise homens
queixando-se de compulsões que os obrigam a entrar em jogos pornográficos, ou
até a armazená-los numa reserva eletrónica! Do outro lado, o das esposas e das
amantes, pratica-se menos do que se faz notar a prática do seu parceiro. E
então, depende: ou se toma por uma traição ou por um divertimento sem
consequência. Esta clínica da pornografia é do século XXI – evoco-a, mas ela
mereceria ser detalhada porque é insistente e, desde há uma quinzena de anos,
tornou-se extremamente assídua nas análises.
Mas como não
evocar a respeito desta prática tão contemporânea o que foi, como Lacan
assinalou, a explosão dos efeitos do cristianismo na arte, efeitos estes que
foram elevados ao apogeu pelo barroco? Ao regressar de Itália, de uma visita
pelas igrejas, que Lacan chamava belissimamente uma orgia, ele notava, no seu
Seminário Encore: «tudo é exibição de corpos evocando o gozo»
– eis
onde estamos no porno. Contudo, a exibição religiosa de corpos extasiados
deixa
sempre fora do seu campo a própria copulação, da mesma forma que a copulação
está fora de campo, diz Lacan, na realidade humana.
Curioso retorno
desta expressão: «realidade humana». É a mesma que usou o primeiro tradutor de
Heidegger em francês para exprimir o Dasein. Mas há muito tempo que cortámos a
via do deixar-ser a este Dasein. Na era da técnica, a copulação já não está
confinada ao privado, a alimentar as fantasias próprias de cada um, mas
integra-se agora no campo da representação, esta mesma elevada a uma escala de
massa.
Há ainda uma
segunda diferença a sublinhar entre o porno e o barroco. Tal como é definido
por Lacan, o barroco visaria a regulação da alma por meio da visão dos corpos,
a escopia corporal. Nada de semelhante no porno, nenhuma regulação, antes uma
perpétua infração. A escopia corporal funciona no porno como uma provocação ao
gozo destinada a satisfazer-se na modalidade do mais-de-gozar
, modo
transgressivo relativamente à regulação homeostática e precária na sua
realização silenciosa e solitária. Habitualmente, a cerimónia, de um lado e de
outro do ecrã, realiza-se sem palavras, embora com suspiros e gritos imitados
do prazer. A adoração do falo, outrora segredo dos mistérios, permanece um
episódio central – salvo no porno lésbico – mas agora banalizado.
A difusão
planetária da pornografia através da rede tem sem dúvida efeitos cujo
testemunho a psicanálise recebe. O que diz, o que representa a omnipresença do
porno no começo deste século? Apenas que a relação sexual não existe. Eis o que
é repercutido, de certa forma cantado, por este espetáculo incessante e sempre
disponível. Porque só esta ausência é capaz de dar conta de semelhante entusiasmo
cujas consequências já temos que acompanhar nos costumes das jovens gerações,
quanto ao estilo das relações sexuais: desencanto, brutalização, banalização. A
fúria copulatória atinge na pornografia um zero de sentido que faz pensar os
leitores da Fenomenologia do espírito no que Hegel diz da morte infligida pela
liberdade universal frente ao terror, a saber, que ela é «a mais fria e insípida,
sem outra significação que a de cortar uma cabeça de couve ou beber um gole de
água»
. A
copulação pornográfica tem a mesma vacuidade semântica.
A relação sexual
não existe! É preciso escutar esta sentença com o acento que lhe dá Plutarco
quando relata – o único a fazê-lo na antiguidade – a palavra fatal que ressoa
pelo mar: O grande Pã está morto! O episódio figura no diálogo intitulado
«Sobre a desaparição dos oráculos», que já evoquei outrora no meu curso
. E a
palavra ressoa como o último oráculo anunciando que, depois dele, não haverá
mais oráculos, como o oráculo que anuncia que os oráculos desapareceram. De
facto, nesta época, sob Tibério, em todo o território do império romano, os
santuários, onde antes a multidão se comprimia para solicitar e recolher os
oráculos, conheceram uma crescente desafeição. Uma mutação invisível caminhando
nas profundezas do gosto fechava a porta dos oráculos inspirados pelos demónios
da mântica – digo demónios, não porque eram maus, mas porque se chamava
demónios aos seres intermédios entre os deuses e os homens, e sem dúvida a
figura de Pã representava-os.
Não podemos
deixar de ser sensíveis ao destino dos oráculos e a que, um dia, com efeito,
eles desapareceram numa zona onde tinham sido procurados avidamente, na medida
em que a nossa prática de interpretação, como costumamos dizer, é oracular. Mas
o oráculo para nós é justamente o dito de Lacan sobre a relação sexual. E ele
permite-nos – Lacan formulou-o muito antes que surgisse a pornografia
eletrónica de que falo – de pôr em seu devido lugar a pornografia. Isto não é
de maneira alguma – quem poderia pensá-lo – a solução dos impasses da sexualidade.
Ele é sintoma deste império da técnica que, doravante, estende o seu reino
sobre as mais diversas civilizações do planeta, inclusive as mais renitentes.
Não se trata de entregar as armas perante o sintoma e outros com a mesma
origem. Eles exigem da psicanálise interpretação.
Acaso poderia
esta divagação sobre a pornografia dar-nos o título do próximo congresso?
Revelei, num destes congressos, e Leonardo Gorostiza recordou-o, a disciplina à
qual tinha escolhido submeter-me na escolha do tema para a AMP. Eles vêm de
forma triádica, dizia eu, e cada um por sua vez dá a prevalência a uma das
categorias de Lacan cujas iniciais são R.S.I. Depois de «A ordem simbólica…»,
depois de «Um real…», conviria esperar então, como o tinham deduzido
perfeitamente Leonardo Gorostiza e outros, que o imaginário ocupasse o primeiro
plano. Sob que modo poderia fazê-lo senão a título de corpo, uma vez que se
encontra formulada em Lacan uma tal equivalência: o imaginário é o corpo. E ela
não está isolada, todo o ensino de Lacan no seu conjunto testemunha a favor
desta equivalência.
Em primeiro
lugar, o corpo introduz-se nela antes de mais como imagem, imagem no espelho,
de onde confere ao eu um estatuto que se distingue singularmente do que Freud
lhe reconhecia na segunda tópica. Em segundo lugar, é ainda por meio de um jogo
de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalente entre o ideal do eu e o eu
ideal, cujos termos adota de Freud, mas para os formalizar de um modo inédito.
Esta afinidade do corpo e do imaginário é ainda reafirmada no seu ensino dos
nós. A construção borromeana acentua que é por meio da sua imagem que o corpo
participa, antes de mais, da economia do gozo. Em quarto lugar, para além
disso, o corpo condiciona tudo o que o registo imaginário aloja de representações:
significado, sentido e significação, e a própria imagem do mundo. É no corpo
imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos
constituem um mundo ilusório sobre o modelo da unidade do corpo. São razões de
sobra para escolher fazer variar, no próximo congresso, o tema do corpo na
dimensão do imaginário.
Tinha
praticamente aderido a esta ideia quando me apercebi de que o corpo mudava de
registo enquanto corpo falante. O que é o corpo falante? Ah, é um mistério
, disse
um dia Lacan. Importa tanto mais reter este dito de Lacan quanto mistério não é
matema, é mesmo o oposto. Em Descartes, o que constitui mistério mas permanece
indubitável é a união da alma e do corpo. A ela é consagrada a «Sexta
meditação», que, por si só, mobilizou tanto o engenho do seu mais eminente
comentador quanto as cinco precedentes. Esta união, enquanto diz respeito ao
meu corpo, meum corpus, vale como terceira substância entre a substância pensamento
e a substância extensão. Este corpo, diz Descartes – a citação é famosa - «eu
não estou simplesmente alojado no meu corpo, tal como um piloto no seu navio,
mas, pelo contrário, tão intimamente unido e de tal forma confundido e
misturado com ele que formamos um único todo»
[9]. Como se
sabe, a chamada dúvida hiperbólica, figurada pela hipótese do génio maligno,
salva o cogito e entrega-vos a sua certeza como um resto que resiste até à
maior dúvida que se possa conceber. Sabe-se menos que, mais tarde, precisamente
nesta sexta meditação, se descobre que a dúvida também poupava a união do eu
penso com o corpo
, o que
se distingue entre todos por ser o corpo deste eu penso.
Sem dúvida, para
nos apercebermos disso, há que prolongar o arco deste a posteriori até Edmund
Husserl e as suas Meditações cartesianas. Ele distingue aí, por um lado, com um
termo precioso, os corpos físicos entre os quais os dos meus semelhantes e, por
outro lado, o meu corpo. E para o meu corpo, ele introduz um termo especial.
Escreve: encontro numa caracterização singular a minha carne, meinen leibe, a
saber, o que não é um simples corpo, mas certamente uma carne, o único objeto
no interior da minha camada de experiência ao qual atribuo um campo de sensação
à medida da experiência
. O
termo precioso é o de carne, que se distingue do que são os corpos físicos. Ele
entende por carne o que aparecia a Descartes como as espécies da união da alma
e do corpo.
Esta carne está
sem dúvida apagada no Dasein heideggeriano, mas ela nutriu a reflexão de
Merleau-Ponty na sua obra inacabada O Visível e o Invisível
, livro
ao qual Lacan consagrou alguma atenção ao longo do Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise
. Ele
não revela aí o seu interesse por este vocábulo, mas contudo retoma-o quando
evoca a carne que transporta a marca do signo. O signo recorta a carne,
desvitaliza-a e cadaveriza-a, e então o corpo separa-se dela. Na distinção
entre o corpo e a carne, o corpo mostra-se apto a figurar, como superfície de
inscrição, o lugar do Outro do significante. Para nós, o mistério cartesiano da
união psicossomática desloca-se. O que constitui mistério mas permanece
indubitável é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para o dizer
em termos cartesianos, o mistério é antes o da união da palavra e do corpo.
Deste facto de experiência pode dizer-se que ele é do registo do real.
Aqui convém dar
a sua relevância ao facto de que o último ensino de Lacan propõe um novo nome
para o inconsciente. Há uma palavra para o dizer. Não podemos guardá-la para o
congresso porque é um neologismo. Ela não se traduz. Se se reportarem ao texto
intitulado «Televisão»
, aí
verão que eu interpelo Lacan sobre o termo inconsciente. Digo-lhe apenas: «O
inconsciente – palavra estranha», porque já me parecia que não era um termo que
conjugava muito bem com o ponto em que ele estava na sua doutrina. Ele
responde-me – vê-lo-ão, já o viram, sabem-no – desvalorizando esta palavra:
«Freud não encontrou nenhuma melhor, e não há que voltar a isso.» Ele admite
portanto que esta palavra é imperfeita e desiste de toda a tentativa de a
alterar. Mas, dois anos depois, tinha mudado de opinião, a acreditar no seu
texto «Joyce o Sintoma»
, onde
propõe o neologismo a que eu aludia, sobre o qual profetiza que substituirá o
termo freudiano de inconsciente, o parlêtre
.
Proponho que seja
esta operação a dar-nos a bússola para o próximo congresso. Esta metáfora, a
substituição do parlêtre lacaniano ao inconsciente freudiano, fixa uma centelha.
Proponho tomá-la como índice do que muda na psicanálise do século XXI quando
ela deve ter em conta uma outra ordem simbólica e um outro real diferente
daqueles sobre os quais se estabelecera.
A psicanálise
muda, é um facto. Ela mudou, observava Lacan com malícia, na medida em que foi
antes de mais praticada por Freud sozinho, passando depois a ser praticada em
casal. Mas ela conheceu muitas outras mudanças, cuja medida nós apreciamos
quando lemos Freud, e mesmo quando lemos, relemos o primeiro Lacan. Ela muda de
facto, ainda que permaneçamos apegados a termos e esquemas antigos. É um
esforço contínuo para nos mantermos o mais próximo possível da experiência para
a dizer, sem nos esmagarmos contra o muro da linguagem. Para nos ajudar a
transpô-lo, este muro, precisamos de um (a)muro
, quero
dizer, uma palavra agalmática que perfure o muro. E esta palavra encontro-a no parlêtre.
Ela não figurará
no cartaz do próximo congresso. Será entre nós que se saberá que é questão do parlêtre
enquanto substituído ao inconsciente, na medida em que analisar o parlêtre não
é exatamente a mesma coisa que analisar o inconsciente no sentido de Freud, nem
mesmo o inconsciente estruturado como uma linguagem. Eu diria mesmo: façamos a
aposta de que analisar o parlêtre é o que já fazemos e que nos resta saber
dizê-lo.
Aprendemos a
dizê-lo. Por exemplo, quando falamos do sintoma
como de
um sinthoma
.
Eis uma palavra, um conceito que é da época do parlêtre. Ele traduz um
deslocamento do conceito de sintoma do inconsciente ao parlêtre. Como sabem, o
sintoma, enquanto formação do inconsciente estruturado como uma linguagem, é
uma metáfora, um efeito de sentido, induzido pela substituição de um
significante por outro. Pelo contrário, o sinthoma de um parlêtre é um
acontecimento de corpo, uma emergência de gozo. Nada diz, aliás, que o corpo em
questão seja o vosso. Podem ser o sintoma de um outro corpo por pouco que sejam
uma mulher. Há histeria quando há sintoma de sintoma, quando fazem sintoma do
sintoma de um outro, quer dizer, sintoma em segundo grau. Continua a ser
preciso esclarecer o sintoma do parlêtre na sua relação com os tipos clínicos –
apenas o evoco, seguindo os traços de Lacan, no que concerne à histeria.
Não o
conseguiremos esquecendo a estrutura do sintoma do inconsciente, tal como a
segunda tópica de Freud não anula a primeira, mas forma-se com ela. De igual
modo, Lacan não veio apagar Freud, mas prolongá-lo. As mudanças no seu ensino
dão-se sem fratura, utilizando os recursos de uma topologia conceptual que
assegura a continuidade sem interdizer a renovação. Assim, de Freud a Lacan, diremos
que o mecanismo do recalcamento nos é explicitado pela metáfora, como, do
inconsciente ao parlêtre, a metáfora nos dá o invólucro formal do acontecimento
de corpo. O recalcamento explicitado pela metáfora é uma cifragem e a operação
desta cifragem trabalha para o gozo que afeta o corpo. É de um tal remendo de diversas peças de diferentes épocas, tomadas de
Freud e Lacan, que se tece a nossa reflexão, e não temos que recuar neste modo
de assim proceder, a um remendo, para nos acercarmos cada vez mais da
psicanálise do século XXI.
Apontarei aqui
para um outro vocábulo – depois de sinthoma – que é da época do parlêtre e que
colocarei ao lado do sinthoma. É uma palavra que nos obriga igualmente a
proceder a uma nova classificação das noções que nos são familiares. O termo
que coloco ao lado do sinthoma é a palavra escabelo, que tomo de «Joyce o
Sintoma»
- em espanhol é escabel. O escabelo não é uma escada – é mais pequeno que uma
escada – mas tem degraus. O que é o escabelo? – refiro-me ao escabelo
psicanalítico, não apenas àquele de que necessitamos para alcançar os livros
numa biblioteca. É, em termos gerais, aquilo sobre o qual o parlêtre se alça,
sobe para pôr-se belo. É o pedestal que lhe permite elevar-se à dignidade da
coisa. [Mostrando o pequeno estrado de onde fala] Isto, por exemplo, é um
pequeno escabelo para mim.
O escabelo é um
conceito transversal. Ele traduz imageticamente a sublimação freudiana, mas no
seu cruzamento com o narcisismo. Eis uma aproximação que é propriamente da
época do parlêtre. O escabelo é a sublimação, mas na medida em que ela se funda
sobre o eu não penso originário do parlêtre. O que é este eu não penso? É a
negação do inconsciente por meio da qual o parlêtre se acredita senhor do seu ser. E com o seu escabelo, ele acrescenta a
isso que se crê um belo senhor. O que se chama cultura não é mais do que a
reserva de escabelos na qual se vai retirar aquilo com que nos vangloriamos ou
nos fazemos importantes.
Dizia a mim
mesmo, para exemplificar estas categorias que parecem despontar e de que temos
necessidade, que poderia ensaiar um paralelo entre o sinthoma e o escabelo. O
que é que fomenta o escabelo? É o parlêtre na sua face de gozo da palavra. É
este gozo da palavra que faz nascer os grandes ideais do Bem, da Verdade e do
Belo. O sinthoma, pelo contrário, como sintoma do parlêtre, resulta do corpo do
parlêtre. O sintoma surge da marca que a palavra cava quando toma a expressão
do dizer e faz acontecimento no corpo. O escabelo está do lado do gozo da
palavra que inclui o sentido. Em contrapartida, o gozo próprio do sinthoma
exclui o sentido.
Se Lacan se
apaixonou por James Joyce e especialmente pela sua obra Finnegans Wake, foi
pela habilidade – ou pela farsa – que representa ter sabido convergir o sintoma
e o escabelo. Exatamente, Joyce fez do próprio sintoma, enquanto fora do
sentido, ininteligível, o escabelo da sua arte. Ele criou uma literatura cujo
gozo é tão opaco como o do sintoma, e que nem por isso deixa de ser uma obra de
arte, elevado sobre o escabelo à dignidade da coisa. Pode perguntar-se se a
música, a pintura, as belas artes tiveram o seu Joyce. Talvez o que corresponda
a Joyce no registo da música seja a composição atonal, inaugurada por
Schonberg, de que ouvimos falar há pouco
. E no
que diz respeito às Belas-Artes, o iniciador foi talvez um certo Marcel
Duchamp. Joyce, Schonberg, Duchamp são fabricantes de escabelos destinados a
fazer arte com o sintoma, com o gozo opaco do sintoma. E teríamos imensas
dificuldades em julgar o que poderia ser o escabelo-sintoma ao gosto da clínica.
Devemos antes servir-nos do seu exemplo.
Mas, digam-me, fazer
do seu sintoma um escabelo não é precisamente o que está em causa no passe,
onde se joga com o seu sintoma e o seu gozo opaco? Fazer uma análise é
trabalhar na castração do escabelo para revelar o gozo opaco do sintoma. Mas
fazer o passe é jogar com o sintoma, assim limpo, para com ele fazer um
escabelo, com os aplausos do grupo analítico. E para o dizer em termos
freudianos, é evidentemente um facto de sublimação, e os aplausos não são de
modo algum acessórios. O momento em que a assistência está satisfeita faz parte
do passe. Pode até dizer-se que é aí que o passe se cumpre. Entregar ao público
os relatos do passe nunca se fez no tempo de Lacan. A operação mantinha-se enterrada
nas profundezas da instituição, sendo apenas conhecida por um número restrito
de iniciados – o passe era assunto para não mais que dez pessoas. Digamos: eu
inventei levar a cabo uma apresentação pública dos passes porque sabia,
pensava, acreditava que isso tinha que ver com própria essência do passe. Os
escabelos existem para gerar a beleza, porque a beleza é a defesa última contra
o real. Mas uma vez os escabelos derrubados, queimados, ainda resta ao parlêtre
analisado demonstrar o seu saber-fazer com o real, o seu saber fazer dele um
objeto de arte, o seu saber dizer, o seu saber bem dizê-lo. E é o que mostra o início,
a palavra que ele é convidado a tomar. O acontecimento de passe não é a
nomeação, decisão de um coletivo de peritos. O acontecimento de passe é o dizer
de um só, Analista da Escola, quando põe em ordem a sua experiência, quando a interpreta
em benefício de qualquer um que venha a um congresso e que se trata de seduzir
e inflamar – algo que foi largamente posto à prova durante este último
congresso.
Um dizer é um
modo de palavra que se distingue por fazer acontecimento. Freud distinguia
entre os modos da consciência: consciente, pré-consciente, inconsciente. Para
nós, se há modos a distinguir, não é na consciência, mas são modos da palavra.
Em termos de retórica, há a metáfora e a metonímia; em termos de lógica, o
modal e o apofântico, o afirmativo, inclusive o imperativo; e na perspetiva
estilística, há o clichê, o provérbio, o estribilho, e da palavra depende a
escrita…Pois bem, o inconsciente, quando é conceptualizado a partir da palavra,
e já não a partir da consciência, tem um novo nome: o parlêtre. O ser de que se
trata não precede a palavra. É pelo contrário a palavra que outorga o ser a
este animal por um efeito retroativo, e desde então o seu corpo se separa deste
ser para passar ao registo do ter. O parlêtre não o é o corpo, ele o tem
. O parlêtre
tem de se haver com o seu corpo enquanto imaginário, bem como enquanto
simbólico. E o terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos outros
dois. O corpo falante, com os seus dois gozos, gozo da palavra e gozo do corpo,
uma que conduz ao escabelo, outra que suporta o sinthoma. Há no parlêtre, ao
mesmo tempo, gozo do corpo e gozo que se exila para fora do corpo, gozo da
palavra que Lacan identifica, com audácia e com lógica, ao gozo fálico enquanto
ele é desarmónico em relação ao corpo. O corpo falante goza, pois, em dois
registos: por um lado, goza de si mesmo, afeta-se de gozo, ele goza-se –
emprego reflexo do verbo –, por outro lado, um órgão deste corpo distingue-se
por gozar por si mesmo, condensa e isola um gozo à parte que se reparte pelos
objetos a. É nisso que o corpo falante está dividido quanto ao seu gozo. Não é
unitário como faz crer o imaginário. Por isso é preciso que o gozo fálico se
separe no imaginário na operação que se chama castração. O corpo falante fala
em termos de pulsões. É o que autorizava Lacan a apresentar a pulsão segundo o
modelo da cadeia significante. Ele prosseguiu na via de um tal desdobramento na
sua lógica do fantasma onde separa o Isso e o Inconsciente. Mas o conceito de
corpo falante está, em compensação, na juntura do Isso e do Inconsciente. Ele
recorda que as cadeias significantes que deciframos, à maneira de Freud, estão
conectadas ao corpo e que são feitas de substância gozante. Freud dizia do Isso
que ele era o grande reservatório da libido, este dito é deportado ao corpo que
é, como tal, substância gozante. É sobre o corpo que são destacados os objetos a;
é no corpo que é extraído o gozo para o qual trabalha o inconsciente.
Freud podia
dizer, da teoria das pulsões, que era uma mitologia. Em compensação, o que não
é um mito é o gozo. O aparelho psíquico, Freud chama-o, no capítulo VII da Traumdeutung,
uma ficção. O que não é uma ficção é o corpo falante. Era no corpo que Freud
encontrava o princípio da sua ficção sobre o aparelho psíquico. Ele está
construído sobre o arco reflexo enquanto processo regulado de forma a manter a
quantidade de excitação no nível mais baixo possível. Ao aparelho psíquico
estruturado pelo arco reflexo, Lacan substitui o inconsciente estruturado como
uma linguagem. Não estímulo-resposta, mas significante-significado. Simplesmente,
– é uma expressão de Lacan que já sublinhei e expliquei, esta linguagem é uma
elucubração de saber sobre alíngua
,
alíngua do corpo falante.
Segue-se daí que o próprio inconsciente é uma elucubração de saber sobre o
corpo falante, sobre o parlêtre. O que é uma elucubração de saber? É uma
articulação de aparências
que se
desprendem de um real e ao mesmo tempo o encerram. A principal mutação que
afetou a ordem simbólica no seculo XXI é que esta é agora concebida como uma
articulação de aparências. As categorias tradicionais que organizam a
existência passam ao nível de simples construções sociais, votadas à
desconstrução. Não é simplesmente o caso de que as aparências vacilem, mas elas
são reconhecidos como aparências. E por um curioso entrecruzamento, é a
psicanálise que, para Lacan, restitui o outro termo da polaridade conceptual:
nem tudo é aparência; há um real. O real do elo social é a inexistência da
relação sexual. O real do inconsciente é o corpo falante. Quando a ordem
simbólica era concebida como um saber que regula o real e lhe impõe a sua lei,
a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. A ordem simbólica
é agora reconhecida como um sistema de aparências que não comanda o real mas
lhe está subordinado. Um sistema que responde ao real da relação sexual que não
há. Segue-se daí, se posso dizê-lo assim, uma declaração de igualdade clínica
fundamental entre os parlêtres. Os parlêtres estão condenados à debilidade
mental pelo próprio mental, precisamente pelo imaginário como imaginário de
corpo e imaginário de sentido. O simbólico imprime no corpo imaginário
representações semânticas que o corpo falante tece e destece. Por isso, a sua
debilidade condena o corpo falante como tal ao delírio. Perguntamo-nos como
alguém que foi analisado poderia ainda imaginar-se como sendo normal. Na
economia do gozo, um significante-amo vale tanto como outro. Da debilidade ao
delírio, a consequência é boa. A única via que se abre mais além é, para o parlêtre,
desarmar-se
de um real, quer dizer, montar um discurso em que as aparências fixem um real,
um real no qual se pode crer mas a que não se adere, um real que não tem
sentido, indiferente ao sentido, e que só pode ser aquilo que é. A debilidade,
pelo contrário, é o logro do possível. Ser desarmado
de um real – o que eu elogio -, é a única lucidez que
está aberta ao corpo falante para se orientar. Debilidade, delírio, desarme
, tal é
a trilogia de ferro que repercute o nó do imaginário, do simbólico e do real.
Outrora,
falava-se das indicações de análise. Avaliava-se se dada estrutura se prestava
à análise e indicava-se como recusar a análise a quem a pedia por falta de
indicações. Na época do parlêtre, digamos a verdade, analisa-se qualquer um.
Analisar o parlêtre exige jogar uma partida entre delírio, debilidade e desarme.
É dirigir um delírio de tal modo que a sua debilidade ceda ao desarme do real. Freud lidava ainda com o que chamava de
recalcamento. E pudemos constatar nos relatos do passe até que ponto esta
categoria é agora pouco usada. Por certo, há relembranças. Mas nada prova a sua
autenticidade. Nenhuma é definitiva. O dito retorno do recalcado é sempre
arrastado no fluxo do parlêtre onde a verdade se revela mentirosa
incessantemente. No lugar do recalcamento, a análise do parlêtre instala a
verdade mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como recalcamento
originário. E isso quer dizer que a verdade é intrinsecamente da mesma essência
que a mentira. O proton pseudos é também a derradeira falsificação. O que não
mente é o gozo, o ou os gozos do corpo falante.
A interpretação
não é um fragmento de construção incidindo sobre um elemento isolado do
recalcamento, como pretendia Freud. Não é uma elucubração de um saber. Também
não é um efeito de verdade logo absorvido pela sucessão de mentiras. A
interpretação é um dizer que visa o corpo falante para aí produzir um
acontecimento, passar pelas tripas, dizia Lacan, isto não se antecipa, mas verifica-se
só-depois
,
porque o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a análise pode fazer é
harmonizar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma.
Quando se analisa o inconsciente, o sentido da interpretação é a verdade.
Quando se analisa o parlêtre, o corpo falante, o sentido da interpretação é o
gozo. Este deslocamento da verdade ao gozo dá a medida do que se torna a
prática analítica na era do parlêtre.
Por isso
proponho, para o próximo congresso, que nos reunamos sob a bandeira: «o
inconsciente e o corpo falante». É um mistério, dizia Lacan. Tentaremos
penetrá-lo e esclarecê-lo. Que cidade mais propícia que o Rio de Janeiro? Sob o
nome de Pão de Açúcar, ela tem por emblema o mais magnífico dos escabelos.
Obrigado.
[Versão
estabelecida por Anne-Charlotte Gauthier, Ève Miller-Rose et Guy Briole. Texto
oral, não revisto pelo autor].
[Tradução
de Filipe Pereirinha, ACF – Portugal]