sexta-feira, 31 de julho de 2015

Para ler lacan...



Tratou-se de ler o Seminário XVII, de Jacques Lacan, ao pé da letra. Foi um trabalho vagaroso, mas produtivo. Mais do que chegar ao fim, saltando por cima das arestas, apostou-se no esmiuçamento, no comentário miúdo, de pormenor. Para combater os efeitos imaginários de grupo, a mera colagem a um sujeito-suposto-saber ler ou a passividade e inércia que tendem por vezes a instalar-se, foi pedido a cada um que fizesse um esforço para dizer, para dar conta daquilo, pouco ou muito, que passou para ele da leitura que fizemos deste seminário, elaborando, a cada sessão, um «relatório» da mesma. Aqui fica o exemplo da sessão de trinta de julho de 2015.

Chegados aqui, após um ano de leitura do Seminário XVII, poderíamos reduzir a coisa ao seu esqueleto: em cima, em baixo, à esquerda, à direita (p. 106). É um quaternário. Mas não se trata, neste caso, do quaternário heideggeriano (o céu e a terra, os divinos e os mortais) ou até da conhecida divisão política entre direita e esquerda, mesmo se o político não está de modo algum excluído deste seminário, antes pelo contrário.
Para entrar no ensino de Lacan, poderíamos dizer, há um mínimo: é preciso saber contar até quatro. É uma aritmética simples. Com efeito, não basta a mãe (quer esta seja boa ou má), o pai (brando ou severo, presente ou ausente) ou mesmo a triangulação edipiana tão cara a Freud. Não só neste seminário, onde isso é dito explicitamente, mas desde o início do ensino de Lacan que se trata de ir «além de Freud». Não pondo-o simplesmente de lado, mas formalizando os seus termos. É o caso, por exemplo, da metáfora paterna: uma estrutura quaternária. Mais tarde – abreviando - quando Lacan, após ter sido «excomungado», como diz, propõe os «quatro conceitos fundamentais», de novo estamos perante uma estrutura quaternária: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. O seminário XVII não foge à regra, ao propor os «quatro discursos»: do mestre, da histérica, da universidade e do analista. Mais tarde, no seminário XX, trata-se igualmente de jogar com a estrutura quaternária, desta vez traduzida nas «fórmulas quânticas da sexuação», como diferentes modalidades, do lado «homem» e do lado «mulher», de responder à inexistência de uma «relação» formalizável entre os sexos. Finalmente, concluindo este breve resumo, não é também desse quaternário que se trata quando Lacan propõe, no seminário XXIII, o sinthoma, isto é, um «nó a quatro»?
No caso do seminário XVII poderíamos levar esta ideia ainda mais longe – uma ideia quase «fractal», como se diz nas matemáticas, onde a mesma «estrutura» se repete em escalas diferentes: quatro discursos, cada discurso composto por quatro lugares, cada lugar ocupado – ou sendo ocupável – por quatro elementos (S1, o significante-mestre; S2, o saber; a, o mais-de-gozar: $, o sujeito) e quatro giros ou modos de rotação.
Para entender o termo «discurso» em Lacan, importa começar por descartar o que ele não é: a palavra proferida por um sujeito. Não que isso não tenha o seu lugar num discurso, mas antes porque, consoante o discurso em causa, o lugar de onde se fala ou é falado, os significantes que se usa ou que determinam o que é dito, a verdade que sustenta a fala (ou o silêncio), aquilo que se produz, o (mais de) gozo que se extrai, não são o mesmo. É por isso que importa saber o que age, isto é, o que é «determinante» num discurso. É nessa medida, por exemplo, tal como diz o título deste seminário, que o discurso do mestre é o «avesso» da psicanálise, do discurso do psicanalista. Que este possa descambar para uma certa confusão com o discurso do mestre ou da histérica, em particular quando as areias movediças da política fazem resvalar o pé, é algo para o qual Lacan nos chama a atenção neste seminário. Ainda assim, desde que bem orientados pelo discurso do analista, tanto o discurso do mestre como o discurso da histérica nos ajudam, porventura, a situar melhor o que está em causa na  política.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Uma lição...

Entramos no Táxi. Quem nos conduz é o realizador iraniano Jafar Panahi. O filme vai-nos envolvendo como quem não quer a coisa. Como acontece aos demais que vão entrando no Táxi, não é claro para nós onde acaba a ficção e começa a realidade, de tal modo elas se entrelaçam uma na outra. Um dos reconhecidos méritos do filme, vencedor do Urso de Ouro em Berlim, é precisamente esse.  Mesmo quando a realidade é sórdida, para falarmos dela, para a mostrar como convém, é preciso um desvio pela ficção. Eis uma primeira nota a reter: se toda a verdade é mentirosa, como diria Lacan, há que usar de uma certa mentira - e o cinema também é isso - para acercar-se de um real que não mente, para acostar a ele o mais possível, mas sem embater ou despedaçar-se na rocha.

A certa altura do filme, um jovem estudante de cinema, dirigindo-se ao mestre, confessa estar embaraçado com o tema para um filme que tem de realizar no final de curso. Já leu todos os livros, já viu todos os filmes, mas a coisa não sai. Espera que alguém o ajude, alguém que lhe dê uma fórmula, uma receita. Alguém mais experiente, que já tenha dado provas. Um Outro suposto saber o que fazer onde o sujeito encalha. Pois bem, o que responde o «condutor» de Táxi, o próprio Jafar Panahi? Mais ou menos isto, e cito de cor: se já leste todos os livros e viste todos os filmes, agora é contigo. NINGUÉM TE PODE AJUDAR.

Estamos em Teerão e o próprio realizador tem sobre ele o peso de uma condenação: não pode realizar filmes durante vinte anos desde que foi preso em 2010 e proibido de trabalhar ou viajar por alegadamente fazer filmes contra o regime. Numa primeira leitura, por conseguinte, é como se ele respondesse ao jovem aspirante a realizador: AQUI NINGUÉM TE PODE AJUDAR. Ou segues as regras impostas pelo regime para a realização de filmes, fazendo um filme que seja «distribuível», ou ninguém o quererá ver, mais do que isso, nem sequer te permitirão fazê-lo. Neste caso, a resposta é a mera constatação de um estado de coisas: repara em mim, a quem te diriges! Nem mesmo eu te posso ajudar, uma vez que estou igualmente sujeito à regra que diz o que posso e não posso fazer.

Mas há uma outra leitura mais abrangente, mais interessante, a meu ver, e que não se limita à situação concreta de um estado de coisas, de um regime: ninguém te pode ajudar a encontrar a tua solução porque nenhum Outro a detém. Ninguém a conhece. Ela não foi ainda inventada. Podes ler todos os livros que foram escritos, ver todos os filmes que foram realizados até agora, mas sobre a vida que tens de viver ou o filme que deves fazer, desde que não te limites simplesmente a copiar a fórmula já experimentada, ninguém te pode ajudar. O Outro, suposto saber o que diz, o que deves ou não deves fazer, não existe. Ou então, quando existe, isto é, quando alguém, um regime por exemplo, se faz passar pelo Outro, ditando as regras de viver, de fazer filmes, é pior. Tudo se torna uma imensa prisão a céu aberto, no exterior, e não só dentro das prisões efetivas. É por isso que alguns, como ironizava a certa altura uma advogada, amiga de Jafar Panahi, preferem voltar para dentro da prisão mesmo quando são posto cá fora.

Contudo, gostava de propor ainda uma outra leitura da frase: ninguém te pode ajudar significa, revertendo o seu endereçamento, que ninguém me pode ajudar. Ninguém me pode ajudar, a mim, Jafar Panahi; terei de ser eu, com os meus recursos, o meu saber, o meu amor pelo cinema, a minha perseverança em não ceder no meu desejo frente às imposições da autoridade política e religiosa, a encontrar uma solução. «Taxi» é o nome da solução encontrada por Jafar Panahi: proibido de «conduzir» filmes mas não de conduzir um táxi, ele aproveita a lacuna, o não escrito na lei, para vestir o «semblant» de taxista, acoplar uma câmara de vídeo no para-brisas do táxi e conduzir-nos através das ruas de Teerão enquanto vai conversando com diversas pessoas que entram e saem do táxi.

Uma lição de cinema. Uma lição de vida.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Dois textos com voz própria

Ana Paula Gomes é psicanalista da Escola Lacaniana de Psicanálise - RJ. Um dos seus temas de eleição é a travessia e o fim de uma análise: o que acontece ao sujeito, e nomeadamente a homens e mulheres, durante e no final da mesma? Os dois textos que agora tive a oportunidade de reler confirmam esta temática. Mais concretamente, o primeiro deles, Uma psicanálise, o que é isso?, tem por objetivo pensar a relação do sujeito com o Outro e, ao mesmo tempo, o que ocorre, ou se altera, na sua relação com o Supereu no final de uma análise; o segundo, Do impasse freudiano ao passe lacaniano, visa responder à questão de como se dá a passagem da falta fálica à causa do desejo, numa análise, para além do rochedo da castração; limite a que Freud parecia condenar ambos os sexos e que Lacan pretendeu superar.

A primeira nota de leitura que ressaltou para mim foi o «tom», digamos, a voz que sustenta a enunciação presente em cada um dos textos. E é interessante o modo como isto se prende com a pergunta feita por Ana Paula Gomes no primeiro deles,: «Ao final de uma análise, qual a relação do sujeito com a sua própria voz», uma voz finalmente «descolada» do seu «tom» superegoico? Eu diria que a resposta já está contida na pergunta, melhor ainda, no próprio texto. A autora responde em ato, por meio de um estilo singular, à pergunta que formula no final do mesmo. Um estilo é não só o advento como a apropriação de uma voz: não só o modo como a autora vai entrelaçando considerações de ordem mais teórica (colhidas tanto em Freud como em Lacan) com exemplos clínicos, como a forma leve e solta, se bem que rigorosa, de temperar o dizer com laivos de poesia ou referências cinéfilas, como é o caso em particular do diretor espanhol Pedro Almodóvar e, nomeadamente, o filme A pele que habito (2011).

Muito haveria a dizer sobre cada um dos textos. Mas um  texto não é algo para se fechar de uma vez para sempre. Um texto é para ler, mas sobretudo para reler. Cada leitura é um certo recorte da letra. O mais interessante - e porventura menos evidente para o senso comum - é que uma psicanálise é também uma leitura. Uma leitura do que foi «inscrito e escrito» pelo Outro no sujeito e que o determina e condiciona. Será possível, desse «texto alheio», inscrito no corpo e na mente pelas determinações inconscientes, extrair uma voz própria? Para que tal aconteça, é preciso, por exemplo, que naquele lugar em que se demandava amor - um amor que tanto pode ser a mola de uma análise como o seu maior obstáculo - o sujeito consiga fazer «causa de desejo». Lacan dizia que o amor é o que permite ao gozo (por exemplo o gozo do sintoma) condescender ao desejo. Este é o seu lado operante, digamos, mas o amor pode ser também um muro ou um «rosário de lamentações» para o sujeito: um modo de este se esquivar do impossível de escrever na relação entre os sexos. Em vez de fazer desse impossível causa, o sujeito detém-se à beira do que Freud chamava: «rocha da castração». Se no meio do caminho, como diria o poeta, tinha uma pedra, no fim do caminho, segundo Freud, tem uma rocha. Será possível ir além dessa rocha como pretendia Lacan?

Numa passagem ao mesmo tempo rigorosa, acutilante e extremamente bela, na medida em que o belo é fruto de um bem-dizer que bordeja o real, Ana Paula Gomes, no segundo texto, dá-nos uma resposta: «...se trata, na travessia de uma análise, de fazer operar a castração, de forma que uma certa margem de liberdade opere, permitindo ao sujeito fazer, do amor necessário que recebeu em sua constituição, algo menos repetitivo, menos sintomático. "O amor precisa da sorte, de um trato certo com o tempo", canta o poeta. O tempo é castração, e o amor, a tentativa de obturá-lo. Aceitar o trato com o tempo fala da contingência do amor. É a inclusão do impossível do real no possível do amor.»

É esta a resposta inteira, a única resposta? Nem por isso. Não só porque não há A resposta, como não há A mulher ou A relação - é disso que há um luto a fazer - mas tão só cada um  «tendo de suportar um real que o nome porta mas não designa». Autor-i-zar-se a trans-portar esse real, para além dos impasses imaginários, não será uma condição indispensável para que possa advir, como diria Rimbaud, um novo amor? Um amor menos repetitivo, nas suas lamentações, e mais inventivo, isto é, que consiga «fazer outra coisa com este ponto limite do real»?

Ana Paula Gomes. «Uma psicanálise, o que é isso»; «Do impasse freudiano ao passe lacaniano: da falta fálica à causa do desejo». in Os dispositivos de verificação do passe. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2013, pp. 99-104 e 161-166.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

O inconsciente e o corpo falante

Se o mundo muda, a psicanálise também. Eis um texto essencial, de Jacques-Alain Miller, traçando algumas das coordenadas orientadoras da psicanálise no século XXI. Essencial. A tradução é minha, bem como as opções e possíveis erros.



O inconsciente e o corpo falante

Por Jacques-Alain Miller
Apresentação do tema do Xº Congresso da AMP no Rio de Janeiro em 2016

Mais do que na cereja sobre o bolo, gostaria de pensar na bebida que lhes vou servir como digestivo, após os alimentos que vos proporcionou este congresso[1], para abrir o apetite enquanto pensam no que vai ocorrer daqui a dois anos. Espera-se, então, que eu introduza o tema do próximo congresso.
Digo a mim mesmo que isto já dura há mais de trinta anos se pensarmos que os congressos da AMP deram continuidade ao que se chamava Encontros internacionais do Campo Freudiano, que começaram em 1980. Eis-nos ainda, portanto, mais uma vez, ao pé do mesmo muro. A palavra muro surgiu-me, e ela não deixa de evocar o neologismo que troça do amor: é ao amuro que devo a honra invariável que me é feita de dar o lá da sinfonia, a que teremos de compor enquanto membros da AMP ao longo dos dois anos que vão decorrer até nos reencontrarmos? Será ele um efeito de transferência, transferência remanescente em relação àquele que teve a responsabilidade de fundar outrora a nossa associação? Mas como eu recordava, o cargo de intitular, de dar um nome, pelo menos um tema, assumo-o desde antes, desde o primeiro encontro internacional que teve lugar em Buenos Aires na presença de Lacan. Se há amuro, não o relacionaria com a função de fundador, que nada consagra nos nossos estatutos, mas de um batedor,[2] função que eu me tinha conferido ao intitular o meu curso «A orientação lacaniana».
Amuro quer sobretudo dizer que é preciso trespassar o muro da linguagem para tentar estreitar de mais perto – não digamos o real – o que fazemos na nossa prática analítica. Mas, enfim, orientar-me no pensamento de Lacan foi a minha preocupação e eu sei que nós a partilhamos. A Associação mundial de psicanálise não tem, com efeito, outra coesão. Pelo menos esta preocupação está na base do agrupamento que formamos, para além dos estatutos, dos mutualismos e mesmo dos laços de amizade, de simpatia que se tecem entre nós há muitos anos.
Lacan reivindicava para o seu pensamento a dignidade. Porque, dizia ele, empenhava-se em sair da regra. E, com efeito, este pensamento extravia. Trata-se para nós de o seguir por vias inéditas. Estas vias são por vezes obscuras. E tornaram-se ainda mais quando Lacan mergulha no último ensino. Poderíamos tê-lo deixado aí, abandonado. Mas empenhámo-nos em segui-lo e os dois últimos congressos testemunham isso.
Porquê termo-nos empenhado em segui-lo nesta última e difícil ramificação do seu ensino? Não daremos qualquer importância ao gosto pelo deciframento. Tenho este gosto, e temo-lo, porque somos analistas. E somo-lo o suficiente para perceber em certos clarões, rompendo as nuvens obscuras do propósito de Lacan, que ele consegue fazer ressaltar um relevo que nos ensina sobre aquilo em que se torna a psicanálise e que já não é de todo conforme ao que se pensava que era. No extremo limite, mas não vamos permanecer aí, ele deixou mesmo escapar que a prática analítica lhe aparecia como uma prática delirante.
A psicanálise muda, não é um desejo, é um facto, ela muda nos nossos gabinetes de analistas, e esta mudança, no fundo para nós, é tão manifesta que o congresso de 2012 sobre a ordem simbólica, tal como o deste ano sobre o real, têm no título a mesma menção cronológica ao «século XXI». Como dizer melhor que temos o sentimento do novo e, com ele, a perceção da urgência da necessidade de um acerto.
Como não teríamos nós, por exemplo, a ideia de uma fratura, quando Freud inventou a psicanálise, se podemos dizer, sob a égide da rainha Vitória, modelo da repressão da sexualidade, enquanto o século XXI conhece a difusão maciça do que se chama o porno, e que é o coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a cada um na internet por meio de um simples clique do rato? De Vitória ao porno, não passamos simplesmente da interdição à permissão, mas ao incitamento, à intrusão, à provocação, ao acossamento. O que é o porno senão um fantasma filmado com uma variedade adequada para satisfazer os apetites perversos na sua diversidade? Nada mostra melhor a ausência de relação sexual no real do que a profusão imaginária do corpo entregue a dar-se e a tomar-se.
É algo novo na sexualidade, no seu regime social, nos seus modos de aprendizagem, nos jovens, nas classes jovens que entram na carreira. Eis os masturbadores aliviados de ter que produzir por si mesmos os sonhos diurnos visto que os encontram já feitos, já sonhados para eles. O sexo fraco, quanto ao porno, é o masculino, ele cede-lhe facilmente. Quantas vezes não se ouve em análise homens queixando-se de compulsões que os obrigam a entrar em jogos pornográficos, ou até a armazená-los numa reserva eletrónica! Do outro lado, o das esposas e das amantes, pratica-se menos do que se faz notar a prática do seu parceiro. E então, depende: ou se toma por uma traição ou por um divertimento sem consequência. Esta clínica da pornografia é do século XXI – evoco-a, mas ela mereceria ser detalhada porque é insistente e, desde há uma quinzena de anos, tornou-se extremamente assídua nas análises.
Mas como não evocar a respeito desta prática tão contemporânea o que foi, como Lacan assinalou, a explosão dos efeitos do cristianismo na arte, efeitos estes que foram elevados ao apogeu pelo barroco? Ao regressar de Itália, de uma visita pelas igrejas, que Lacan chamava belissimamente uma orgia, ele notava, no seu Seminário Encore: «tudo é exibição de corpos evocando o gozo»[3] – eis onde estamos no porno. Contudo, a exibição religiosa de corpos extasiados[4] deixa sempre fora do seu campo a própria copulação, da mesma forma que a copulação está fora de campo, diz Lacan, na realidade humana.
Curioso retorno desta expressão: «realidade humana». É a mesma que usou o primeiro tradutor de Heidegger em francês para exprimir o Dasein. Mas há muito tempo que cortámos a via do deixar-ser a este Dasein. Na era da técnica, a copulação já não está confinada ao privado, a alimentar as fantasias próprias de cada um, mas integra-se agora no campo da representação, esta mesma elevada a uma escala de massa.
Há ainda uma segunda diferença a sublinhar entre o porno e o barroco. Tal como é definido por Lacan, o barroco visaria a regulação da alma por meio da visão dos corpos, a escopia corporal. Nada de semelhante no porno, nenhuma regulação, antes uma perpétua infração. A escopia corporal funciona no porno como uma provocação ao gozo destinada a satisfazer-se na modalidade do mais-de-gozar[5], modo transgressivo relativamente à regulação homeostática e precária na sua realização silenciosa e solitária. Habitualmente, a cerimónia, de um lado e de outro do ecrã, realiza-se sem palavras, embora com suspiros e gritos imitados do prazer. A adoração do falo, outrora segredo dos mistérios, permanece um episódio central – salvo no porno lésbico – mas agora banalizado.
A difusão planetária da pornografia através da rede tem sem dúvida efeitos cujo testemunho a psicanálise recebe. O que diz, o que representa a omnipresença do porno no começo deste século? Apenas que a relação sexual não existe. Eis o que é repercutido, de certa forma cantado, por este espetáculo incessante e sempre disponível. Porque só esta ausência é capaz de dar conta de semelhante entusiasmo cujas consequências já temos que acompanhar nos costumes das jovens gerações, quanto ao estilo das relações sexuais: desencanto, brutalização, banalização. A fúria copulatória atinge na pornografia um zero de sentido que faz pensar os leitores da Fenomenologia do espírito no que Hegel diz da morte infligida pela liberdade universal frente ao terror, a saber, que ela é «a mais fria e insípida, sem outra significação que a de cortar uma cabeça de couve ou beber um gole de água»[6]. A copulação pornográfica tem a mesma vacuidade semântica.
A relação sexual não existe! É preciso escutar esta sentença com o acento que lhe dá Plutarco quando relata – o único a fazê-lo na antiguidade – a palavra fatal que ressoa pelo mar: O grande Pã está morto! O episódio figura no diálogo intitulado «Sobre a desaparição dos oráculos», que já evoquei outrora no meu curso[7]. E a palavra ressoa como o último oráculo anunciando que, depois dele, não haverá mais oráculos, como o oráculo que anuncia que os oráculos desapareceram. De facto, nesta época, sob Tibério, em todo o território do império romano, os santuários, onde antes a multidão se comprimia para solicitar e recolher os oráculos, conheceram uma crescente desafeição. Uma mutação invisível caminhando nas profundezas do gosto fechava a porta dos oráculos inspirados pelos demónios da mântica – digo demónios, não porque eram maus, mas porque se chamava demónios aos seres intermédios entre os deuses e os homens, e sem dúvida a figura de Pã representava-os.
Não podemos deixar de ser sensíveis ao destino dos oráculos e a que, um dia, com efeito, eles desapareceram numa zona onde tinham sido procurados avidamente, na medida em que a nossa prática de interpretação, como costumamos dizer, é oracular. Mas o oráculo para nós é justamente o dito de Lacan sobre a relação sexual. E ele permite-nos – Lacan formulou-o muito antes que surgisse a pornografia eletrónica de que falo – de pôr em seu devido lugar a pornografia. Isto não é de maneira alguma – quem poderia pensá-lo – a solução dos impasses da sexualidade. Ele é sintoma deste império da técnica que, doravante, estende o seu reino sobre as mais diversas civilizações do planeta, inclusive as mais renitentes. Não se trata de entregar as armas perante o sintoma e outros com a mesma origem. Eles exigem da psicanálise interpretação.
Acaso poderia esta divagação sobre a pornografia dar-nos o título do próximo congresso? Revelei, num destes congressos, e Leonardo Gorostiza recordou-o, a disciplina à qual tinha escolhido submeter-me na escolha do tema para a AMP. Eles vêm de forma triádica, dizia eu, e cada um por sua vez dá a prevalência a uma das categorias de Lacan cujas iniciais são R.S.I. Depois de «A ordem simbólica…», depois de «Um real…», conviria esperar então, como o tinham deduzido perfeitamente Leonardo Gorostiza e outros, que o imaginário ocupasse o primeiro plano. Sob que modo poderia fazê-lo senão a título de corpo, uma vez que se encontra formulada em Lacan uma tal equivalência: o imaginário é o corpo. E ela não está isolada, todo o ensino de Lacan no seu conjunto testemunha a favor desta equivalência.
Em primeiro lugar, o corpo introduz-se nela antes de mais como imagem, imagem no espelho, de onde confere ao eu um estatuto que se distingue singularmente do que Freud lhe reconhecia na segunda tópica. Em segundo lugar, é ainda por meio de um jogo de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalente entre o ideal do eu e o eu ideal, cujos termos adota de Freud, mas para os formalizar de um modo inédito. Esta afinidade do corpo e do imaginário é ainda reafirmada no seu ensino dos nós. A construção borromeana acentua que é por meio da sua imagem que o corpo participa, antes de mais, da economia do gozo. Em quarto lugar, para além disso, o corpo condiciona tudo o que o registo imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, e a própria imagem do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório sobre o modelo da unidade do corpo. São razões de sobra para escolher fazer variar, no próximo congresso, o tema do corpo na dimensão do imaginário.
Tinha praticamente aderido a esta ideia quando me apercebi de que o corpo mudava de registo enquanto corpo falante. O que é o corpo falante? Ah, é um mistério[8], disse um dia Lacan. Importa tanto mais reter este dito de Lacan quanto mistério não é matema, é mesmo o oposto. Em Descartes, o que constitui mistério mas permanece indubitável é a união da alma e do corpo. A ela é consagrada a «Sexta meditação», que, por si só, mobilizou tanto o engenho do seu mais eminente comentador quanto as cinco precedentes. Esta união, enquanto diz respeito ao meu corpo, meum corpus, vale como terceira substância entre a substância pensamento e a substância extensão. Este corpo, diz Descartes – a citação é famosa - «eu não estou simplesmente alojado no meu corpo, tal como um piloto no seu navio, mas, pelo contrário, tão intimamente unido e de tal forma confundido e misturado com ele que formamos um único todo»[9]. Como se sabe, a chamada dúvida hiperbólica, figurada pela hipótese do génio maligno, salva o cogito e entrega-vos a sua certeza como um resto que resiste até à maior dúvida que se possa conceber. Sabe-se menos que, mais tarde, precisamente nesta sexta meditação, se descobre que a dúvida também poupava a união do eu penso com o corpo[10], o que se distingue entre todos por ser o corpo deste eu penso.
Sem dúvida, para nos apercebermos disso, há que prolongar o arco deste a posteriori até Edmund Husserl e as suas Meditações cartesianas. Ele distingue aí, por um lado, com um termo precioso, os corpos físicos entre os quais os dos meus semelhantes e, por outro lado, o meu corpo. E para o meu corpo, ele introduz um termo especial. Escreve: encontro numa caracterização singular a minha carne, meinen leibe, a saber, o que não é um simples corpo, mas certamente uma carne, o único objeto no interior da minha camada de experiência ao qual atribuo um campo de sensação à medida da experiência[11]. O termo precioso é o de carne, que se distingue do que são os corpos físicos. Ele entende por carne o que aparecia a Descartes como as espécies da união da alma e do corpo.
Esta carne está sem dúvida apagada no Dasein heideggeriano, mas ela nutriu a reflexão de Merleau-Ponty na sua obra inacabada O Visível e o Invisível[12], livro ao qual Lacan consagrou alguma atenção ao longo do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[13]. Ele não revela aí o seu interesse por este vocábulo, mas contudo retoma-o quando evoca a carne que transporta a marca do signo. O signo recorta a carne, desvitaliza-a e cadaveriza-a, e então o corpo separa-se dela. Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo mostra-se apto a figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. Para nós, o mistério cartesiano da união psicossomática desloca-se. O que constitui mistério mas permanece indubitável é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para o dizer em termos cartesianos, o mistério é antes o da união da palavra e do corpo. Deste facto de experiência pode dizer-se que ele é do registo do real.
Aqui convém dar a sua relevância ao facto de que o último ensino de Lacan propõe um novo nome para o inconsciente. Há uma palavra para o dizer. Não podemos guardá-la para o congresso porque é um neologismo. Ela não se traduz. Se se reportarem ao texto intitulado «Televisão»[14], aí verão que eu interpelo Lacan sobre o termo inconsciente. Digo-lhe apenas: «O inconsciente – palavra estranha», porque já me parecia que não era um termo que conjugava muito bem com o ponto em que ele estava na sua doutrina. Ele responde-me – vê-lo-ão, já o viram, sabem-no – desvalorizando esta palavra: «Freud não encontrou nenhuma melhor, e não há que voltar a isso.» Ele admite portanto que esta palavra é imperfeita e desiste de toda a tentativa de a alterar. Mas, dois anos depois, tinha mudado de opinião, a acreditar no seu texto «Joyce o Sintoma»[15], onde propõe o neologismo a que eu aludia, sobre o qual profetiza que substituirá o termo freudiano de inconsciente, o parlêtre[16].
Proponho que seja esta operação a dar-nos a bússola para o próximo congresso. Esta metáfora, a substituição do parlêtre lacaniano ao inconsciente freudiano, fixa uma centelha. Proponho tomá-la como índice do que muda na psicanálise do século XXI quando ela deve ter em conta uma outra ordem simbólica e um outro real diferente daqueles sobre os quais se estabelecera.
A psicanálise muda, é um facto. Ela mudou, observava Lacan com malícia, na medida em que foi antes de mais praticada por Freud sozinho, passando depois a ser praticada em casal. Mas ela conheceu muitas outras mudanças, cuja medida nós apreciamos quando lemos Freud, e mesmo quando lemos, relemos o primeiro Lacan. Ela muda de facto, ainda que permaneçamos apegados a termos e esquemas antigos. É um esforço contínuo para nos mantermos o mais próximo possível da experiência para a dizer, sem nos esmagarmos contra o muro da linguagem. Para nos ajudar a transpô-lo, este muro, precisamos de um (a)muro[17], quero dizer, uma palavra agalmática que perfure o muro. E esta palavra encontro-a no parlêtre.
Ela não figurará no cartaz do próximo congresso. Será entre nós que se saberá que é questão do parlêtre enquanto substituído ao inconsciente, na medida em que analisar o parlêtre não é exatamente a mesma coisa que analisar o inconsciente no sentido de Freud, nem mesmo o inconsciente estruturado como uma linguagem. Eu diria mesmo: façamos a aposta de que analisar o parlêtre é o que já fazemos e que nos resta saber dizê-lo.
Aprendemos a dizê-lo. Por exemplo, quando falamos do sintoma[18] como de um sinthoma[19]. Eis uma palavra, um conceito que é da época do parlêtre. Ele traduz um deslocamento do conceito de sintoma do inconsciente ao parlêtre. Como sabem, o sintoma, enquanto formação do inconsciente estruturado como uma linguagem, é uma metáfora, um efeito de sentido, induzido pela substituição de um significante por outro. Pelo contrário, o sinthoma de um parlêtre é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo. Nada diz, aliás, que o corpo em questão seja o vosso. Podem ser o sintoma de um outro corpo por pouco que sejam uma mulher. Há histeria quando há sintoma de sintoma, quando fazem sintoma do sintoma de um outro, quer dizer, sintoma em segundo grau. Continua a ser preciso esclarecer o sintoma do parlêtre na sua relação com os tipos clínicos – apenas o evoco, seguindo os traços de Lacan, no que concerne à histeria.
Não o conseguiremos esquecendo a estrutura do sintoma do inconsciente, tal como a segunda tópica de Freud não anula a primeira, mas forma-se com ela. De igual modo, Lacan não veio apagar Freud, mas prolongá-lo. As mudanças no seu ensino dão-se sem fratura, utilizando os recursos de uma topologia conceptual que assegura a continuidade sem interdizer a renovação. Assim, de Freud a Lacan, diremos que o mecanismo do recalcamento nos é explicitado pela metáfora, como, do inconsciente ao parlêtre, a metáfora nos dá o invólucro formal do acontecimento de corpo. O recalcamento explicitado pela metáfora é uma cifragem e a operação desta cifragem trabalha para o gozo que afeta o corpo. É de um tal remendo de diversas peças de diferentes épocas, tomadas de Freud e Lacan, que se tece a nossa reflexão, e não temos que recuar neste modo de assim proceder, a um remendo, para nos acercarmos cada vez mais da psicanálise do século XXI.
Apontarei aqui para um outro vocábulo – depois de sinthoma – que é da época do parlêtre e que colocarei ao lado do sinthoma. É uma palavra que nos obriga igualmente a proceder a uma nova classificação das noções que nos são familiares. O termo que coloco ao lado do sinthoma é a palavra escabelo, que tomo de «Joyce o Sintoma»[20] - em espanhol é escabel. O escabelo não é uma escada – é mais pequeno que uma escada – mas tem degraus. O que é o escabelo? – refiro-me ao escabelo psicanalítico, não apenas àquele de que necessitamos para alcançar os livros numa biblioteca. É, em termos gerais, aquilo sobre o qual o parlêtre se alça, sobe para pôr-se belo. É o pedestal que lhe permite elevar-se à dignidade da coisa. [Mostrando o pequeno estrado de onde fala] Isto, por exemplo, é um pequeno escabelo para mim.
O escabelo é um conceito transversal. Ele traduz imageticamente a sublimação freudiana, mas no seu cruzamento com o narcisismo. Eis uma aproximação que é propriamente da época do parlêtre. O escabelo é a sublimação, mas na medida em que ela se funda sobre o eu não penso originário do parlêtre. O que é este eu não penso? É a negação do inconsciente por meio da qual o parlêtre se acredita senhor do seu ser. E com o seu escabelo, ele acrescenta a isso que se crê um belo senhor. O que se chama cultura não é mais do que a reserva de escabelos na qual se vai retirar aquilo com que nos vangloriamos ou nos fazemos importantes.
Dizia a mim mesmo, para exemplificar estas categorias que parecem despontar e de que temos necessidade, que poderia ensaiar um paralelo entre o sinthoma e o escabelo. O que é que fomenta o escabelo? É o parlêtre na sua face de gozo da palavra. É este gozo da palavra que faz nascer os grandes ideais do Bem, da Verdade e do Belo. O sinthoma, pelo contrário, como sintoma do parlêtre, resulta do corpo do parlêtre. O sintoma surge da marca que a palavra cava quando toma a expressão do dizer e faz acontecimento no corpo. O escabelo está do lado do gozo da palavra que inclui o sentido. Em contrapartida, o gozo próprio do sinthoma exclui o sentido.
Se Lacan se apaixonou por James Joyce e especialmente pela sua obra Finnegans Wake, foi pela habilidade – ou pela farsa – que representa ter sabido convergir o sintoma e o escabelo. Exatamente, Joyce fez do próprio sintoma, enquanto fora do sentido, ininteligível, o escabelo da sua arte. Ele criou uma literatura cujo gozo é tão opaco como o do sintoma, e que nem por isso deixa de ser uma obra de arte, elevado sobre o escabelo à dignidade da coisa. Pode perguntar-se se a música, a pintura, as belas artes tiveram o seu Joyce. Talvez o que corresponda a Joyce no registo da música seja a composição atonal, inaugurada por Schonberg, de que ouvimos falar há pouco[21]. E no que diz respeito às Belas-Artes, o iniciador foi talvez um certo Marcel Duchamp. Joyce, Schonberg, Duchamp são fabricantes de escabelos destinados a fazer arte com o sintoma, com o gozo opaco do sintoma. E teríamos imensas dificuldades em julgar o que poderia ser o escabelo-sintoma ao gosto da clínica. Devemos antes servir-nos do seu exemplo.
Mas, digam-me, fazer do seu sintoma um escabelo não é precisamente o que está em causa no passe, onde se joga com o seu sintoma e o seu gozo opaco? Fazer uma análise é trabalhar na castração do escabelo para revelar o gozo opaco do sintoma. Mas fazer o passe é jogar com o sintoma, assim limpo, para com ele fazer um escabelo, com os aplausos do grupo analítico. E para o dizer em termos freudianos, é evidentemente um facto de sublimação, e os aplausos não são de modo algum acessórios. O momento em que a assistência está satisfeita faz parte do passe. Pode até dizer-se que é aí que o passe se cumpre. Entregar ao público os relatos do passe nunca se fez no tempo de Lacan. A operação mantinha-se enterrada nas profundezas da instituição, sendo apenas conhecida por um número restrito de iniciados – o passe era assunto para não mais que dez pessoas. Digamos: eu inventei levar a cabo uma apresentação pública dos passes porque sabia, pensava, acreditava que isso tinha que ver com própria essência do passe. Os escabelos existem para gerar a beleza, porque a beleza é a defesa última contra o real. Mas uma vez os escabelos derrubados, queimados, ainda resta ao parlêtre analisado demonstrar o seu saber-fazer com o real, o seu saber fazer dele um objeto de arte, o seu saber dizer, o seu saber bem dizê-lo. E é o que mostra o início, a palavra que ele é convidado a tomar. O acontecimento de passe não é a nomeação, decisão de um coletivo de peritos. O acontecimento de passe é o dizer de um só, Analista da Escola, quando põe em ordem a sua experiência, quando a interpreta em benefício de qualquer um que venha a um congresso e que se trata de seduzir e inflamar – algo que foi largamente posto à prova durante este último congresso.
Um dizer é um modo de palavra que se distingue por fazer acontecimento. Freud distinguia entre os modos da consciência: consciente, pré-consciente, inconsciente. Para nós, se há modos a distinguir, não é na consciência, mas são modos da palavra. Em termos de retórica, há a metáfora e a metonímia; em termos de lógica, o modal e o apofântico, o afirmativo, inclusive o imperativo; e na perspetiva estilística, há o clichê, o provérbio, o estribilho, e da palavra depende a escrita…Pois bem, o inconsciente, quando é conceptualizado a partir da palavra, e já não a partir da consciência, tem um novo nome: o parlêtre. O ser de que se trata não precede a palavra. É pelo contrário a palavra que outorga o ser a este animal por um efeito retroativo, e desde então o seu corpo se separa deste ser para passar ao registo do ter. O parlêtre não o é o corpo, ele o tem[22]. O parlêtre tem de se haver com o seu corpo enquanto imaginário, bem como enquanto simbólico. E o terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos outros dois. O corpo falante, com os seus dois gozos, gozo da palavra e gozo do corpo, uma que conduz ao escabelo, outra que suporta o sinthoma. Há no parlêtre, ao mesmo tempo, gozo do corpo e gozo que se exila para fora do corpo, gozo da palavra que Lacan identifica, com audácia e com lógica, ao gozo fálico enquanto ele é desarmónico em relação ao corpo. O corpo falante goza, pois, em dois registos: por um lado, goza de si mesmo, afeta-se de gozo, ele goza-se – emprego reflexo do verbo –, por outro lado, um órgão deste corpo distingue-se por gozar por si mesmo, condensa e isola um gozo à parte que se reparte pelos objetos a. É nisso que o corpo falante está dividido quanto ao seu gozo. Não é unitário como faz crer o imaginário. Por isso é preciso que o gozo fálico se separe no imaginário na operação que se chama castração. O corpo falante fala em termos de pulsões. É o que autorizava Lacan a apresentar a pulsão segundo o modelo da cadeia significante. Ele prosseguiu na via de um tal desdobramento na sua lógica do fantasma onde separa o Isso e o Inconsciente. Mas o conceito de corpo falante está, em compensação, na juntura do Isso e do Inconsciente. Ele recorda que as cadeias significantes que deciframos, à maneira de Freud, estão conectadas ao corpo e que são feitas de substância gozante. Freud dizia do Isso que ele era o grande reservatório da libido, este dito é deportado ao corpo que é, como tal, substância gozante. É sobre o corpo que são destacados os objetos a; é no corpo que é extraído o gozo para o qual trabalha o inconsciente.
Freud podia dizer, da teoria das pulsões, que era uma mitologia. Em compensação, o que não é um mito é o gozo. O aparelho psíquico, Freud chama-o, no capítulo VII da Traumdeutung, uma ficção. O que não é uma ficção é o corpo falante. Era no corpo que Freud encontrava o princípio da sua ficção sobre o aparelho psíquico. Ele está construído sobre o arco reflexo enquanto processo regulado de forma a manter a quantidade de excitação no nível mais baixo possível. Ao aparelho psíquico estruturado pelo arco reflexo, Lacan substitui o inconsciente estruturado como uma linguagem. Não estímulo-resposta, mas significante-significado. Simplesmente, – é uma expressão de Lacan que já sublinhei e expliquei, esta linguagem é uma elucubração de saber sobre alíngua[23], alíngua do corpo falante.[24] Segue-se daí que o próprio inconsciente é uma elucubração de saber sobre o corpo falante, sobre o parlêtre. O que é uma elucubração de saber? É uma articulação de aparências[25] que se desprendem de um real e ao mesmo tempo o encerram. A principal mutação que afetou a ordem simbólica no seculo XXI é que esta é agora concebida como uma articulação de aparências. As categorias tradicionais que organizam a existência passam ao nível de simples construções sociais, votadas à desconstrução. Não é simplesmente o caso de que as aparências vacilem, mas elas são reconhecidos como aparências. E por um curioso entrecruzamento, é a psicanálise que, para Lacan, restitui o outro termo da polaridade conceptual: nem tudo é aparência; há um real. O real do elo social é a inexistência da relação sexual. O real do inconsciente é o corpo falante. Quando a ordem simbólica era concebida como um saber que regula o real e lhe impõe a sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. A ordem simbólica é agora reconhecida como um sistema de aparências que não comanda o real mas lhe está subordinado. Um sistema que responde ao real da relação sexual que não há. Segue-se daí, se posso dizê-lo assim, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os parlêtres. Os parlêtres estão condenados à debilidade mental pelo próprio mental, precisamente pelo imaginário como imaginário de corpo e imaginário de sentido. O simbólico imprime no corpo imaginário representações semânticas que o corpo falante tece e destece. Por isso, a sua debilidade condena o corpo falante como tal ao delírio. Perguntamo-nos como alguém que foi analisado poderia ainda imaginar-se como sendo normal. Na economia do gozo, um significante-amo vale tanto como outro. Da debilidade ao delírio, a consequência é boa. A única via que se abre mais além é, para o parlêtre, desarmar-se[26] de um real, quer dizer, montar um discurso em que as aparências fixem um real, um real no qual se pode crer mas a que não se adere, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido, e que só pode ser aquilo que é. A debilidade, pelo contrário, é o logro do possível. Ser desarmado[27] de um real – o que eu elogio -, é a única lucidez que está aberta ao corpo falante para se orientar. Debilidade, delírio, desarme[28], tal é a trilogia de ferro que repercute o nó do imaginário, do simbólico e do real.
Outrora, falava-se das indicações de análise. Avaliava-se se dada estrutura se prestava à análise e indicava-se como recusar a análise a quem a pedia por falta de indicações. Na época do parlêtre, digamos a verdade, analisa-se qualquer um. Analisar o parlêtre exige jogar uma partida entre delírio, debilidade e desarme. É dirigir um delírio de tal modo que a sua debilidade ceda ao desarme do real. Freud lidava ainda com o que chamava de recalcamento. E pudemos constatar nos relatos do passe até que ponto esta categoria é agora pouco usada. Por certo, há relembranças. Mas nada prova a sua autenticidade. Nenhuma é definitiva. O dito retorno do recalcado é sempre arrastado no fluxo do parlêtre onde a verdade se revela mentirosa incessantemente. No lugar do recalcamento, a análise do parlêtre instala a verdade mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como recalcamento originário. E isso quer dizer que a verdade é intrinsecamente da mesma essência que a mentira. O proton pseudos é também a derradeira falsificação. O que não mente é o gozo, o ou os gozos do corpo falante.
A interpretação não é um fragmento de construção incidindo sobre um elemento isolado do recalcamento, como pretendia Freud. Não é uma elucubração de um saber. Também não é um efeito de verdade logo absorvido pela sucessão de mentiras. A interpretação é um dizer que visa o corpo falante para aí produzir um acontecimento, passar pelas tripas, dizia Lacan, isto não se antecipa, mas verifica-se só-depois[29], porque o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a análise pode fazer é harmonizar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma. Quando se analisa o inconsciente, o sentido da interpretação é a verdade. Quando se analisa o parlêtre, o corpo falante, o sentido da interpretação é o gozo. Este deslocamento da verdade ao gozo dá a medida do que se torna a prática analítica na era do parlêtre.
Por isso proponho, para o próximo congresso, que nos reunamos sob a bandeira: «o inconsciente e o corpo falante». É um mistério, dizia Lacan. Tentaremos penetrá-lo e esclarecê-lo. Que cidade mais propícia que o Rio de Janeiro? Sob o nome de Pão de Açúcar, ela tem por emblema o mais magnífico dos escabelos. Obrigado.
[Versão estabelecida por Anne-Charlotte Gauthier, Ève Miller-Rose et Guy Briole. Texto oral, não revisto pelo autor].

[Tradução de Filipe Pereirinha, ACF – Portugal]


[1] Conferência proferida por Jacques-Alain Miller no encerramento do IXº congresso da Associação mundial de psicanálise (AMP), a 17 abril de 2014, em Paris, apresentando o tema do seu Xº congresso.
[2] A palavra «éclaireur» tem em francês ressonâncias diversas que é impossível transpor completamente em português, remetendo não só para aquele que vai à frente, explorando o terreno, abrindo clareiras, mas também para aquele que esclarece, decifra ou elucida algo. Creio que os parágrafos seguintes ajudam a precisar melhor estes diversos sentidos da palavra. [Nota do tradutor].
[3] Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 102-103.
[4] Mais literalmente seria: corpos pasmados, embora me pareça que, em português, se perde a dimensão de gozo inerente ao uso do termo em francês, daí que tenha preferido, neste caso, afastar-me um pouco da letra para me acercar melhor daquilo que está em causa. [Nota do tradutor].
[5] Plus-de-jouir, no original.
[6] Hegel G.W.F., Phénoménologie de l'esprit, trad. J. Hippolyte, t. 2, Paris, Aubier, 1941, p. 136.
[7] Cf. Miller J.-A., « L'orientation lacanienne. Un effort de poésie », leçon du 13 novembre 2002, inédit.
[8] Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, op. cit., p. 118.
[9] Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, op. cit., p. 118.
[10] Ibid., p. 330.
[11] Husserl E., Méditations cartésiennes.
[12] Merleau-Ponty M., « L'entrelacs – Le chiasme », Le Visible et l'invisible, Paris, Gallimard, 1964, p. 172-204.
[13] Lacan J., Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1973, p. 87.
[14] Lacan J., « Télévision », Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 511.
[15] Cf. Lacan J., « Joyce le Symptôme », Autres écrits, op. cit., p. 568. Sobre este ponto, reportar-nos-emos também ao: Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome, Paris, Seuil, 2005, p. 56 : «O sujeito suportando-se do parlêtre, que é o que eu designo como sendo o inconsciente».
[16] Decidimos manter, neste caso, o termo no original, uma vez que não encontramos nenhuma correspondência exata em português. Dizer que se trata do inconsciente, de um termo novo para o inconsciente, não dá conta de todo o seu alcance, visto que, como sublinha Miller, haveria ainda que acrescentar o corpo. Parlêtre diz respeito ao ser-que-fala (e que é falado) mas onde o corpo não está ausente. É um falasser, mas apenas na medida em que este ser não é desencarnado, desincorporado…
[17] Lacan J., Je parle aux murs, Paris, Seuil, 2011, p. 103.
[18] Symptôme, no original.
[19] Sinthome, no original.
[20] Cf. Lacan J., « Joyce le Symptôme », op. cit., p. 565-569.
[21] Cf. Masson D., «Impromptu. Les chemins du réel en musique », intervenção no IXº congresso da l'amp, Paris, 17 avril 2014, inédito – disponível para escutar na Internet no site radiolacan.com.
[22] Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome,Paris, Seuil, 2005, p. 154.
[23] Cf. Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, op. cit., p. 127.
[24] Lalangue, no original.
[25] Semblants, no original.
[26] «Se faire dupe d’un réel», no original. Uma alternativa seria: deixar-se levar, desproteger-se, ficar desabrigado, desarmado, desacautelar-se; mais até, em meu entender, do que «deixar-se enganar», uma vez que o real desengana mais do que engana. A palavra «logro», na sua ambiguidade, tanto de engano como de êxito, conseguimento, também seria uma tradução possível.
[27] Dupe, no original. Além de ser uma tradução possível do termo, ele remete igualmente para o «pathos», a paixão por um real.
[28] Duperie, no original.
[29] Après-coup, no original.